O texto de hoje tem duas finalidades. Assinalar (recordando quem está injustamente esquecido) o falecimento de um dos maiores artistas portugueses de sempre e fazer "mea culpa" pois até finais da década de 90 nunca lhe reconheci mérito. Mas quem é que o tendo por barbeiro, com cerca de 20 anos de idade, podia «acreditar que o senhor barbeiro António seria músico!». O barbeiro de Lisboa não era o de Sevilha. Durante muitos anos estive do lado errado da história. E pior, da justiça para com um grande artista.
"Meu" barbeiro (quase...) por acaso
A minha relação com o barbeiro que me cortava o cabelo desde criança - a partir dos sete/oito anos - chegara ao ponto de ruptura. Praticamente vizinho, a cerca de trinta metros do local onde morava, atingira o limite. Questionava ele, passados dez anos de sã convívio: «O que é que um guedelhudo faz num barbeiro?!». Após meia dúzia de vezes decidi terminar. Ora um barbeiro é alguém que se tem para a vida, como um casamento ou os pais. Estava órfão ou divorciado. Necessitava de novo barbeiro mas não me apetecia ser cliente de nenhum outro dos que conhecia arriscando a que me dissessem o mesmo.
A rota dos tesos
No final dos anos 70 para quem vivia no bairro da Graça e queria deslocar-se a uma sala de cinema do meio da avenida da Liberdade - Tivoli e São Jorge - querendo poupar nos trocos dos transportes tinha de "cortar" duas colinas de Lisboa a direito mas era penoso. Subir a travessa da Pereira já era estafante, mas depois de descer até ao Intendente esperava-nos a subida da calçada do Desterro até aproveitar a planura do Campo Santana, descer a rua de Santo António dos Capuchos (onde mais tarde viria a saber que morava o senhor Macarrão, funcionário ímpar do Benfica) rua da Fé e rua de São José subindo (embora esta subida comparada com as outras parecesse quase uma descida) até meio da Avenida. O percurso inverso custava mais do dobro até porque já não havia a volúpia de ver um bom filme mas "apenas" o regresso a casa, tantas vezes vista!
Este não vai incomodar
Num qualquer dia do final dos Anos 70, certamente após uma sessão da tarde e em princípio no Tivoli - no São Jorge descia a avenida da Liberdade quando ia veranear para a Baixa - desci a rua de São José mas decidindo ir passear pela Baixa não virei para a habitual rua da Fé continuando em direcção à nossa Gloriosa Secretaria (rua Jardim do Regedor). Poucos metros depois, quase a chegar à esquina da rua de São José com a rua do Telhal (continuação da rua das Pretas) vejo, ao lado esquerdo...uma barbearia. No n.º 70! Eu que estava a necessitar - há meses de ir a um barbeiro - uma barbearia com um nome "sui generis" «É P'RÓ MENINO E P'RÁ MENINA». Decidi entrar e vejo um barbeiro "ziggiano" (de David Bowie) mas com barba, vestido como no disco «ZIGGY STARDUST»(The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars) uma espécie de: A Ascensão e Queda de Ziggy Stardust e as Aranhas de Marte.
Pensei. Acertei. Este não vai questionar nada de nada. Nem por isso. Nunca mais esqueci o que o senhor barbeiro, do n.º 70 da rua de São José (com montra no n.º 68) disse: «O que é que vou fazer a essa trunfa?» Eu incrédulo disse-lhe: «Apare as pontas para não espigar». E assim foi. Devo ter pago quase uns cem escudos!
Depois quando ficava em caminho, de uns quantos meses em meses
Lá parava eu no n.º 70 da rua de São José. Nos barbeiros falava-se de política, mulheres e futebol. Naquele barbeiro - depressa me apercebi, enquanto cliente a ser servido ou à espera de o ser - que as mulheres eram trocadas por música. Falar acerca de mulheres com o "senhor barbeiro ziggiano" era tempo perdido. De política era o habitual, como ainda hoje. De futebol gostava de o ouvir pois descobrindo que era do Minho, ou seja, do Norte a norte da cidade do Porto (estava longe de conhecer a enorme importância do Minho no Benfiquismo) gostava do "Glorioso" e criticava o FC Porto em épocas do Bicampeonato (1977/78 e 1978/79) embora fosse tema que lhe interessasse pouco, mas sendo barbeiro tinha que fazer conversa com o Futebol. O que o entusiasmava era a música. Mas para mim era um patusco, ou seja, "kitsch". Gostava tanto dos conjuntos Maria Albertina (mãe do mediático Cândido Mota), António Mafra, Trio Odemira e mais uns quantos, mas incrivelmente também gostava de Lou Reed (The Velvet Underground), Brian Eno (Roxy Music), Robert Fripp (King Crimson) e Frank Zappa. Ele que tinha quase a idade do meu pai até falava de músicos da geração seguinte: David Byrne (Talking Heads), Glenn Branca (Theoretical Girls) e Ian Curtis (Joy Division). Estes de que eu até tinha "descoberto a existência" há muito pouco tempo! O que é que tinha a ver a Maria Albertina com o Brian Eno? Para mim? Nada! E dava sempre mais importância às figuras que ao colectivo (bandas). Além de misturar retratos de Amália Rodrigues e Marilyn Monroe com vinhetas de santinhos católicos. Para mim era mesmo um tipo patusco, nem conhecia o nome (também ia lá poucas vezes). Era só para "aparar-me o cabelo para as pontas não espigarem". E não discutia. E era Benfiquista!
Um dia soube o nome dele
Sempre "teso" e a dar-lhe pouco trabalho (era só aparar as pontas para não espigar) lembrei-me de dizer-lhe o que, então, estava em voga. «Não há descontos para estudantes ?», mostrando-lhe o cartão da escola. Surpreendentemente disse-me qualquer coisa do tipo (com aquela sua voz pausada quase em sussurro como a pedir desculpa por falar): «Pronto. Nem um quarto-de-hora gasto e há clientes que levo uma hora. É um "Santo António" (vinte escudos) que até é o meu nome!»
Um dia soube que gravava vinis
E comprei-os todos. Dois singles, um maxi e dois LP's. Pouco os ouvi. Mas sempre eram do meu senhor barbeiro. Aliás ex-barbeiro pois há algum tempo que decidira começar a "aparar as pontas para não espigar" em casa! E por isso deixara de frequentar o n.º 70 da rua de São José! Também não devo ter ido à barbearia mais de seis/sete vezes em dois/três anos!
Um dia soube que era artista
Conseguindo passar de «amante» da música a fazer amor com ela e dar amor a quem o ouvia.
Conseguindo passar de «amante» da música a fazer amor com ela e dar amor a quem o ouvia.
Um dia soube que cantava/interpretava
Quando o vi na televisão a "cantar" nem queria acreditar. O "meu" senhor barbeiro António agora também Variações era músico, quando em gosto musical era uma salgalhada?! Nunca o levei a sério!
Um dia soube que estava agendado em diversas actuações ao vivo
Um dia soube que morreu
Também não demorou muito tempo a ouvir que tinha falecido, em 13 de Junho de 1984, há precisamente 34 anos. Aos 39 anos! O artista que conheci antes de ser artista. O músico que nunca conheci a não ser como um barbeiro que gostava de falar da música e de artistas! Dos seus pares. E que ele seria um dos melhores entre os melhores.
Um Benfiquista minhoto. Pois claro!
Alberto Miguéns
NOTA: Passados tantos anos, ele que para mim foi sempre o senhor barbeiro António - nunca Variações - pois jamais me voltei a cruzar com ele enquanto artista com discos gravados e espectáculos feitos, a memória podia atraiçoar, até porque para ele o futebol era mundo presente mas distante por isso pedi ajuda à sua excelente biógrafa, Manuela Gonzaga questionando: «É possível dar-me a indicação de qual o clube desportivo da simpatia, em criança e adulto, de António Variações?». Recebi a seguinte resposta (em 5 de Junho deste ano):
António Variações, Benfiquista. Uma muito boa surpresa boa.
ResponderEliminarTive longe de ter um barbeiro desses. Provavelmente nesse tempo não teria entrado na barbearia... António Variações apareceu e extinguiu-se como uma estrela cadente. Intenso, brilhante, deixando forte impressão em tudo e todos. Uma vida artística demasiado curta para um talento único e para o que este País precisava nesses anos.
Que história, caro Alberto, que história!
História deliciosa, mais uma uma, do caro Alberto. Obrigado por partilhá-la.
ResponderEliminarAntónio Variações benfiquista! Mais um motivo para o admirar ainda mais.
Um barbeiro muito à frente do seu tempo, que desapareceu sem que se desse quase por ele, para hoje ser, por seu exclusivo mérito, um dos grandes nomes da música portuguesa.
Costuma-se dizer "Mais vale tarde que nunca".
Belo texto. Óptima a lembrança.
ResponderEliminarObrigado.
"There's a starman waiting in the sky
He'd like to come and meet us
But he thinks he'd blow our minds
There's a starman waiting in the sky
He's told us not to blow it
Cause he knows it's all worthwhile..."
Li duas vezes esta fenomenal história.
ResponderEliminarAntónio Variações, um Artista Enorme que quase não tive tempo de conhecer de tão curta foi a sua existência. A dua história , meu caro Alberto é uma justa homenagem a um grande benfiquista que também foi um grande músico.
Uma bela história cortando as pontas para não espigar.
ResponderEliminarAntónio Sala fez com ele, na sua própria barbearia, um programa na RR. Lembro-me como se fosse hoje.
A nossa Lena D'Água é herdeira das suas canções.
O Miguéns tem jeito para escrever peças de teatro. O Melo anda distraído!
Caro Benfiquista
EliminarAgradeço a prazer que lhe deu ler um texto que é longo. Não sabia que António Sala tinha feito um programa. Deve ser no tempo em que ele já acumulava barbearia com a música e até tinha uma empregada pois nem sempre podia cumprir o horário pelo que li na biografia. Eu deixei de ir à barbearia algum tempo antes de ele começar a ser António & Variações e depois António Variações. Quando frequentava o estabelecimento era «o senhor barbeiro António Ribeiro».
Na verdade a vida dele dava peças de teatro. Só quando comecei a ler a história do Jazz percebi a dimensão artística conseguida pelo senhor barbeiro António. Ele como António Variações musicalmente foi genial pois conseguiu fazer aquilo que no Jazz se designa por fusão. Juntar dois tipos de músicas que são «vinagre e azeite» e misturá-las. O que só poucos fizeram no história da música. Só génios da nobre arte de harmonizar sons conseguem fazer o que é impossível de misturar por que ouve-se sempre como uma colagem forçada. Nele a fusão entre o rústico folclore/fado português com o ritmo eléctrico anglo-saxónico é natural. É uma novidade e único. Só ele conseguiu o que muitos tentaram em Portugal. Antes e depois dele e não conseguiram. Talvez por intelectualizarem muito o processo ouvindo-se sempre como uma colagem enquanto nele era genuíno. Era ele. Não sabia música, nem a mais elementar. Nada conseguia tocar. Só ouvia e depois interpretava do fundo do coração usando os neurónios para fazer letras bem portuguesas com temáticas perfeitamente sentidas como de Portugal.
Saudações Gloriosas
Alberto Miguéns
Olha, eu não conhecia a rota dos tesos mas cruzei-me imensas vezes com o António Variacoes!!
ResponderEliminarEle morava n Rua Goncalves Crespo a rua onde morava a minha mulher e eu morava na Av Dq Loulé e trabalhava na Rua Andrade Corvo numa empresa bastante conhecida na altura e ja extinta devido a fusão /junção.
Ele realmente andava sempre vestido com aquelas roupas garridas mas nunca pensei que era o equipamento do glorioso.
Pronto,fiquei a saber que também era benfiquista 34 anos depois da sua morte mas também havia 60% de possibilidades de o ser!
Caro
EliminarNem mais. Rua Gonçalves Crespo, n.º 4 no 1.º andar Direito!
Soube agora que era Benfiquista, assim como soube também por aqui que Adriano o foi. Por acaso, tentei de forma infrutífera várias vezes saber a preferência clubística de Variações, tal como de Zeca.
ResponderEliminarOutro Benfiquista, esse sofredor, desaparecido tragicamente nos anos 80 foi Carlos Paião.