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02 setembro 2017

Dérbi Bem Discutido

02 setembro 2017 6 Comentários
AS DISCUSSÕES COM SPORTINGUISTAS NO FINAL DA DÉCADA DE 70 NÃO TÊM NADA A VER COM O QUE SE PASSA AGORA. COM CULPAS MÚTUAS. DE RIVAIS A INIMIGOS.



Em Julho deste ano enquanto procurava uns recortes de vários jornais com listagens de títulos (várias modalidades) que tinha colado no meu quarto, nos anos 70, encontrei um caderno com uma espécie de diário onde registei o seguinte para o dia 2 de Setembro de 1977 (precisamente há 40 anos):

«Fui pagar as contas dos contadores e na Andrade Corvo encontrei um tipo dos TLP que curte Led Zeppelin. Ficou-me com o disco»


Isto não foi exactamente assim
O que aconteceu foi que ele ao ver a nova edição americana - que  nós os "peritos em pedidos de discos sabíamos" estava encomendada na Discoteca Carmo - do LP dos «Led Zeppelin», de nome «Physical Graffiti» que era de 1975 mas que se ansiava pela edição americana de 1977 - perguntou se era do «Carmo». Eu disse que sim. Ele: Já chegou? Eu: Venho de lá agora! Ele: Eu queria mesmo ouvir isso! Eu: Ainda lá há uns dez! Ele: Vou sair tarde. Só amanhã! Eu: Dá-me o dinheiro que custou, fica com este que eu passo por lá para comprar outro! Se já não houver, ouves hoje e dá-me o teu telefone (de casa, pois ainda nem se sabia que um dia haveriam de inventar telemóveis) para combinar a entrega. Se não te telefonar é porque comprei um. Assim foi. Havia. É este que aqui está por baixo. Por isso nem lhe telefonei.


Comprar discos com capas originais - esta tem as janelas recortadas - só em edições inglesas e americanas. Além de raramente serem editados discos em Portugal, mesmo quando eram editados demoravam meses e tinham capas "marteladas" sem qualidade tal como as prensagens de vinil que passado pouco tempo estavam "fritadas" ou riscadas. Tinha de encomendar-se ou procurar novas edições na Discoteca do Carmo, na rua do Carmo, em Lisboa 

O passeio do pagador de recibos
Era o habitual quando juntava os três recibos: EPAL, EDP e TLP. Depois de almoço (tendo aulas de manhã no Liceu Gil Vicente) era descer da Graça ao Martim Moniz, por vezes até parar na Gloriosa Secretaria (ou fazer um desvio até à Discoteca Carmo quando "cheirava" a novidades ou havia encomenda prévia) depois começar a pagar contas: Água nos Restauradores (a seguir ao cinema Condes), energia eléctrica atrás do Marquês de Pombal no topo da rua Camilo Castelo Branco e finalmente depois de ser sempre a subir, o telefone na rua Andrade Corvo quase à esquina com a avenida Duque de Loulé. Seguia-se o regresso à Graça. Sempre a pé para poupar tostões.


Voltei a encontrá-lo algumas vezes nos TLP
Mas era pagar, falar pouco tempo ou muito acerca de música conforme havia ou não outros pagadores de recibos atrás de mim!



Até que um dia...
Disse-me que se quisesse ir com ele a um estúdio de música, porque estava a criar uma "banda punk", era dar uma volta ali pelas vizinhanças e estar à porta dos TLP às sete e meia da tarde. Lá fomos para a Senófila que ficava a cem metros "bem medidos" dos TLP.



Vi nascer o rock português (mas isso não interessa para nada...)
A Senófila servia para se aprender a tocar um instrumento mas também alugava. Um "Santo António" (20 escudos) a cada meia-hora ou 50 escudos (hora-e-meia) por isso com desconto de 10 escudos a cada 90 minutos. Só para comparar a quota mensal do "Glorioso" era, em 1977, de 80 escudos! A fauna da Senófila - quando as bandas marcavam o aluguer - era a que formou a primeira geração pós-25 de Abril de roqueiros: Faíscas que depois passaram a Heróis do Mar, Aqui d'El-Rock, Minas e Armadilhas, Raios e Coriscos, Delirium Tremens que depois seriam Chutos e Pontapés, entre outros que mudavam de nome de uma semana para a outra. Os Delirium Tremens eram Zé Pedro (guitarra), Zé Leonel (baixo mas pouco...que não tinha "jeito") e Paulo Borges (voz). Zé Leonel gostava era de escrever e gritar o que escrevia. Paulo Borges foi para o "Minas e Armadilhas" e Zé Leonel ficou como vocalista, com a bateria e o baixo a ficar para quem quisesse alugar e acompanhar. Entretanto chegou Kalú (desviado do Faíscas) para a bateria e durante algum tempo os Chutos e Pontapés eram um trio com um baixista...volante. Tim chegaria mais tarde vindo da "cena" de Almada onde era muito "betinho" para os grupos locais: UHF, Opinião Pública e «Rock e Vários» depois Roquivários. Os outros eram da "cena" de Lisboa.

Sendo Sportinguista fui a dois jogos com ele (que me lembre...)
Além da música unia-nos o Futebol, embora de clubes diferentes. Eu do SLB e Zé Leonel, aliás José Leonel Santos Perfeito, do Sporting CP. Entre 1978 e 1982 muito se falou de "bola" com ele sempre "por cima" em 1979/80 e 1981/82. Em 1980/81 fui eu a fazer a "dobradinha". Que ricas discussões geralmente na cervejaria Munique (onde conheci o Zé Pedro) entre o Areeiro e a avenida Almirante Reis. Cada um esgrimia argumentos a favor e contra, mas aceitava-se o amor e apego aos clubes como sendo natural. Não podem ser todos do mesmo clube, só a pluralidade de clubes permite que as conquistas tenham amplo significado e a cultura de cada clube extravasa muito o simples jogo e discussão antes e depois de cada prélio. Na época de 1979/80 para apear o FC Porto das conquistas fui com ele para o Peão, num Sporting CP frente ao FC Porto (V 1-0, em 9 de Dezembro de 1979) e ele foi comigo ver a final da Taça de Portugal frente ao FC Porto, em 7 de Junho de 1980. Ficámos na Cabeceira Norte, onde se concentravam os adeptos do Benfica, precisamente onde César marcou o golo. Abraçámo-nos. Em Alvalade e no Estádio Nacional. O SCP foi campeão nacional, o SLB conquistou a Taça de Portugal e o FCP ficou sem a dupla Pinto da Costa/Pedroto despedida pelo presidente portista, dr. Américo de Sá.




Os quatro Chutos e as cinco namoradas - pois inclui a do "fotógrafo" - nas traseiras da Senófila: Kalú, Zé Pedro, Zé Leonel + Cristina Faro e Tim.

Os tempos da alegria (1978 - 1979)
Os Chutos e Pontapés viveram nos primeiros tempos do modo prolífico como Zé Leonel fazia as letras. E todos lhes davam música. Em Dezembro de 1978 - já com Tim trazido de Almada pela namorada almadense de Zé Leonel, Cristina Faro - intensificaram os ensaios na Senófila. E em 13 de Janeiro de 1979 deram um primeiro espectáculo na Sociedade dos Alunos de Apolo, em Campo de Ourique, com um Zé Leonel possesso. Um espectáculo para assinalar e comemorar os "25 anos do Rock and Roll" que teve dois grupos "senófilos" a actuar e que mereceu crítica no Diário de Lisboa!



Os tempos do assim-assim (1980 - 1981)
Com a chegada do Tim, o Zé Leonel foi perdendo "espaço". Tim além de baixista também compunha letras e, ainda para mais, já trazia a ideia da "melodia" ensaiada numa guitarra. Mais de meio trabalho feito. Além disso as letras eram mais eclécticas, abordando problemas sociais, enquanto as do Zé Leonel eram mais problemas sexuais, exceptuando o Leo (de Leonel e Leão). Para além disso Tim fazia questão de interpretar o que escrevia. Zé Leonel passou a ter cada vez menos tempo de palco pois só cantava as suas letras. Que começaram por ser a totalidade e ano-e-meio depois nem a metade chegavam. Foi a sentença de uma saída anunciada. Entretanto chegou o excelente guitarrista Francis que deu uma sonoridade mais "coerente" aos temas. 



Os tempos maus (1982)
Zé Leonel e Francis coexistiram pouco tempo nuns Chutos em quinteto, mas será ainda com Francis que os Chutos gravam os primeiros discos já sem Zé Leonel. No primeiro LP, «78-82» editado em finais de 1982 (Zé Pedro, Kalú, Tim e Francis) só utilizam duas letras de Zé Leonel: Leo e Quero-te. Mas os dois singles (um tema em cada lado A e B) iniciais - editados antes do LP - utilizam três temas: os dois do single de 1981 com Sémen/Quero Mais e um no single de 1982, o Papá Deixa Lá. Cinco temas dos mais de dez que escreveu e que foram musicados e apresentados ao vivo. No segundo LP, «Cerco» editado em 1985 já com a formação actual (Zé Pedro e Tim dos Chutos iniciais e João Cabeleira e Gui do grupo pop Vodka Laranja) gravam "Sexo", o primeiro tema do lado B.



A letra que me parecia curta, mas não era...
Um dia estávamos na esplanada interior da cervejaria Trindade e entre umas cervejas, Zé Leonel escreveu uns versos. Depois deu-me a ler as seis linhas. Eu perguntei-lhe: Bora que está bom. Vais continuar? Ele: Só em casa! 
Até hoje! Nada lhe acrescentou. Ficou pelos seis versos. E ficou tão bem que incrivelmente, apesar de ser tocada em muitos espectáculos dos Chutos e Pontapés durante décadas, só foi gravada em..1998 para a banda sonora do filme "Tentação"! É esta!




Mais ou menos no local onde Zé Leonel escreveu num pedaço de papel os seis versos de "Tão Longe de Ti»


No adeus aos Chutos
Uma gravação já sem o Zé Leonel (mas ainda com o Francis) na Senófila (intercalada com autoestratas erretêpênianas). O lugar do Mundo onde fui mais feliz com (e o vi mais feliz) o Zé Leonel.




Depois cada um seguiu o seu caminho. Ele na música (sem nunca viver dela) e eu por muitos sítios. Poucas vezes nos encontrámos depois do início da década de 80. Uma meia dúzia de vezes. Quando sabia que havia um espectáculo dos Ex-Votos (o grupo que formou depois de "sair" dos Chutos e Pontapés) e podia ir deslocava-me e dávamos "dois dedos de conversa". Ele fez do melhor que a música portuguesa «arrocalhada» produziu, como nestes dois exemplos. Aliás o primeiro tema é do CD Cantigas do Bloqueio (1994) e o termo pimba foi depois utilizado em 1995 pelo Emanuel naquilo que a TVI designaria por música pimba. 

Subtilezas (1994)





Canto aos Peixes (1997)



Numa da últimas vezes que falei com ele dizia: «Se me pagassem direitos cada vez que dizem pimba ou fazem e transmitem música pimba, a quantidade é tal em Portugal, que estava milionário!» 



Talvez a penúltima vez até foi a última a discutir um dérbi. Este. Pouco tempo depois de ocorrer. Ele disse qualquer frase como: «Quando têm orgulho fazem dos impossíveis, possívei.




A última vez, foi de certeza, em 13 de Abril de 2011, quando soube que ia fazer o último espectáculo no Centro Cultural Malaposta (Odivelas). Encontrámo-nos antes do início. Trocámos breves palavras e eu disse-lhe que não gastasse tempo pois tinha que preparar o espectáculo. Logo falaríamos no final. No final havia tantas pessoas de volta dele que eu saí a pensar que depois logo o contactava. Morreu oito dias depois, em 21 de Abril, na sua casa na Póvoa de Santa Iria. Não fui a tempo. Com ele morreu o primeiro panque que houve em Portugal. Foi panque (em atitude) até final da vida. Tinha pouco mais de 56 anos, pois o dia de aniversário dele é a 22 de Fevereiro (1955). «Nasceste quase no dia do Benfica». Era assim que eu lhe dizia, entre final dos anos 70 e início da década de 80, quando falava do aniversário.

Um artista nunca morre, Zé Leonel! Nunca! Aqui estás tu!



Alberto Miguéns


NOTA1: Eras um idealista que pensava mudar o Mundo com a atitude de um inadaptado. De quem se recusava a ser mais um. A andar com a cabeça entre as orelhas. Nem que fosse mudar o Mundo interior de quem te conhecia e ouvia. Atitude sempre atitude. Nunca estavas satisfeito. Sempre em busca da perfeição. Fizeste o que tinha de ser feito. Disseste o que devia ser dito.


 

NOTA2: Zé Pedro nem sempre se lembra que os Chutos e Pontapés (para mim Xutos serão sempre Chutos) só existem porque são 50/50 entre ele e o Zé Leonel. Neste documentário fez-lhe justiça (minuto 01:15). E até interpretam a seguir um tema cuja letra é do Zé Leonel. Sexo. Só podia!

6 comentários
  1. Um testemunho pessoal de grande riqueza factual e de informação muito interessante para os que gostam dos Chutos e Pontapés. O Alberto viu o nascimento do Rock Português e isso interessa e muito. Teve essa sorte e agora partilha alguns desses dias.

    Tem toda a razão. Todos os que viveram a década de 80 guardam memórias desportivas de um outro tempo, de uma outra rivalidade, mais apaixonada e menos invejosa. Mais devotada ao seu Clube e menos ao rancor sobre o Clube alheio. Os anos 80 do Glorioso foram magníficos nos seus contrastes e no que semearam. No Rock e no futebol, porque é disso que se trata neste seu texto.

    No futebol e em particular no SLB, começaram de forma brilhante com Baroti e depois com Eriksson, vivendo-se dias mais brilhantes da nossa História. Pelo Estádio da Luz, tive a sorte de ver jogar uma geração de futebolistas magnífica, vi planteis recheados de grandes jogadores e com grande e forte personalidade. Mas o brilho foi decaindo. Os anos 80 terminaram já com sombras de tempestade. Veio depois, já desde 1985, emergência de um certo futebol, feito de enganos, vigarices, canalhices, dentro e fora do campo. Foi pena. Foi talvez inevitável pois tudo o que é brilhante parece condenado a durar pouco. Semeou-se nessa altura e na horrorosa década de 90. Semeou-se para se estar a colher plenamente nos dias de hoje; dias sombrios na rivalidade Clubistica. Dias de factos alternativos. Dias de declarações incendiárias. Dias de ganância e de guerra pela sobrevivência. Ou melhor por uma certa sobrevivência. Ou talvez quem sabe, guerra pela sobrevivência em sentido literal. Saberemos dentro de alguns anos. Cometem-se hoje disparates financeiros e desportivos que decidirão muito do que se passará na próxima década. Que decidirão o que serão os grandes Clubes de futebol Portugueses no futuro. Só me resta esperar que o Sport Lisboa e Benfica cometa menos erros que os seus adversários (não inimigos). Que o SLB respeite sempre os valores da sua História, o Ideal dos seus pais fundadores.

    Obrigado pela partilha de uma parte da sua história pessoal. É um privilégio poder ler estes seus textos em que funde parte da sua história de vida com a do SLB e (neste caso) do Rock Português.

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  2. História interessante, mas o rock português nasceu bem antes.

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  3. Caro

    Nasceu, mas a geração anterior era prejudicada pela Guerra Colonial que desfazia os conjuntos. Até os nomes marcam as diferenças. Antes de 1977 havia os conjuntos e depois as bandas. Este texto é mais acerca desta 2.ª Geração. Que pôde ter continuidade sem ter de se desfazer por motivos militares (mobilização obrigatória para África).

    Saudações

    Alberto Miguéns

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  4. LED ZEPPELIN,XUTOS E BENFICA.MUITO BOM GOSTO!!!!!!!
    SAUDAÇÕES GLORIOSAS!!!!!!

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  5. Duas paixões no mesmo texto: Xutos e Benfica.
    Tenho pena de só ter lido isto agora, tê-lo-ia mostrado ao Zé Pedro, que como eu, era grande benfiquista (passávamos o tempo a conversar durante os jogos).
    Muito bem, Alberto!

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