HÁ 77 ANOS, EM 9 DE JANEIRO DE 1944, FALECEU AQUELE QUE "EMBALOU" O CLUBE NOS SEUS PRIMEIROS ANOS.
Manuel Gourlade foi quem sempre acreditou no sucesso do Clube e tudo fez para anular os problemas que atormentam clubes que caminham com a debilidade dos que não têm grandes meios económicos como era o caso do «Glorioso» nos seus primeiros anos. Se houve fundador, entre os 24, que amparou o clube quando tentava dar os primeiros passos foi Manuel Gourlade. Fundador e primeiro tesoureiro pois era o contabilista da Farmácia Franco. Provavelmente foi ele o principal responsável pelo Clube não ter sucumbido, entre 28 de Fevereiro de 1904 (fundação) e 13 de Setembro de 1908 (junção com o Sport Clube de Benfica). Por isso, se em 1908 houve Benfiquistas; se em 1929, 1954, 1979 ou 2004 havia Benfiquistas; se em 2021 há Benfiquistas é porque TODOS SOMOS GOURLADE.
Foi ele que teve uma ideia que levou à fundação do Clube, ou seja, à Ideia
E isso ocorreu porque além de futebolista (defesa à esquerda) também era interessado em tudo o que girava à volta do jogo e das equipas para o jogarem. Foi ele que se lembrou de juntar aos miúdos de Belém ávidos por jogarem futebol à experiência de uma geração anterior, já homens feitos, com renome entre os poucos futebolistas desse tempo, com outro tipo de avidez, a de vencer e com meios - futebol nos pés e na cabeça - para isso, os casapianos que brilharam nos campos de Lisboa e Carcavelos na última década do século XIX.
Gourlade surge, para todos nós, em 1903
Mas muito caminho trilhara desde que nascera no bairro da Ajuda, na rua da Paz n.º 118, pelas onze da manhã de 25 de Outubro de 1872, ou seja, tinha 28 anos aquando da mudança do século XIX para o XX. Fica para outro dia fazer uma pequena biografia pormenorizada deste extraordinário exemplo do Benfiquismo. O melhor é encontrá-lo a jogar, por volta de 1902 ou início de 1903, no Verão deste ano certamente, com o seu companheiro de emprego na Farmácia Franco, Daniel Santos Brito e os miúdos que habitavam no mesmo prédio onde estava instalada a citada farmácia, que tinha um pátio interior onde se conseguia jogar. Mas com o número de entusiastas a aumentar depressa o pátio minguou ou os futebolistas entulharam o espaço. A solução foi passar a futebolar nos logradouros que eram múltiplos entre o bairro de Belém e a linha de caminho de ferro Cais do Sodré - Cascais e até para lá desta à beira Tejo.
Nos jogos defesa à esquerda no Football Club (Belém)
Não lhe são reconhecidos grandes dotes como futebolista, talvez por se interessar tardiamente pelo «jogo-jogado» (trintão sem passado de adolescente como futebolista) mas quanto ao «jogo-pensado» e ao modo de afirmar um novo clube não há melhor. Consta que num domingo, talvez 29 de Novembro de 1903, o FC (Belém) lançara um desafio ou foi desafiado por um dos mais competentes grupos da época, o Grupo dos Pinto Basto ou FC Swifts (velozes, rápidos). Os miúdos do clube de Belém lá foram entusiasmados, pois o adversário era respeitado, e entre os dois empregados da Farmácia Franco (o balconista Daniel Santos Brito e o contabilista Manuel Gourlade) e os três irmãos Rosa Rodrigues (José, Cândido e António) estava meia-equipa. A outra meia era dos amigos destes, que eram popularmente designados por Catataus. O jogo foi intenso mas saldou-se por uma derrota tangencial, talvez 0-1 ou 1-2, no local logradouro onde era habitual, em Lisboa, jogar-se depois da proibição de o fazer no Campo Pequeno, com a construção da Praça de Touros: as Terras do Desembargador, às Salésias.
Como era normal quem perdia podia pedir desforra
E era no conjunto destes dois jogos - desafio ou repto e desforra - que se apurava o vencedor se o vencido pedisse desforra. A não pedir servia só um jogo. O Football Club pediu desforra mas surpreendentemente, até pela aproximação ao Natal, período religioso e frio em que não se jogava, Gourlade solicitou ao capitão do FC (Belém) José Rosa Rodrigues que pedisse desforra a Eduardo Pinto Basto, capitão do FC Swifts, para daí a 15 dias (talvez 13 de Dezembro) e não para o domingo seguinte. Como era questão de honra o adversário vitorioso, embora provavelmente estranhasse haver um domingo "em branco" pelo meio...aceitou.
Entre os dois jogos, Gourlade «fisgou-a» bem!
Sabendo que os ex-alunos da Real Casa Pia de Lisboa, que integravam uma agremiação benemérita, a «Associação do Bem», treinavam aos domingos de manhã junto da Cerca da instituição casapiana acercou-se deles no sentido de reforçarem as posições onde o (Belém) Football Club era mais carente. E assim foi. Manuel Gourlade optou pelo menos óbvio. Não se reforçou com os habituais ingleses que andavam por Lisboa sempre livres de clubes e disponíveis para jogar - Eagleson, Ettur ou Gilman - pois mesmo sabendo que o Grupo dos Pinto Basto jogava com ingleses preferiu reforçar-se com futebolistas experientes mas portugueses. Ora um grupo só de portugueses vencer um grupo de ingleses ou mesmo um misto no início do século XX era visto quase como uma impossibilidade, mas não foi...
O jogo que tudo criou e mudou
Na desforra, o certo é que o FC (Belém) venceu, por 1-0, e essa vitória foi vivida de um modo estrondoso pois o misto português/inglês que depois deu origem ao Internacional (CIF) era demolidor nos jogos que realizava frente a outros grupos que não fossem os inalcançáveis com exclusividade inglesa: Carcavellos Club e Lisbon Cricket Club (Cruz Quebrada). Na confraternização que se seguiu no Café do Gonçalves (actual Pastelaria Nau de Belém) surgiu a ideia «Com estes futebolistas - e só portugueses - fazia-se um grande team!» E assim foi. A ideia de Gourlade resultara na perfeição.
Em 28 de Fevereiro de 1904 foi apenas concretizado o que ficara decidido em 1903
Juntaram-se, treinaram de manhã e pela tarde, numa dependência da Farmácia Franco, decidiram fundar o Grupo Sport Lisboa que depois passaria, em 13 de Setembro de 1908, a Sport Lisboa e Benfica, numa efeméride com 117 anos a completar neste ano de 2021. Não foi difícil escolher os primeiros dirigentes. A presidente José Rosa Rodrigues (capitão do Football Club Belém) e como seus auxiliares os dois empregados da farmácia onde o clube ficaria instalado por deferência do proprietário da farmácia, Pedro Franco: Daniel Santos Brito (secretário) e Manuel Gourlade (tesoureiro).
Primeiros tempos do Sport Lisboa
Coube a Manuel Gourlade a maior parte das atitudes - é isso que se percebe na documentação do Clube (presenças em treinos e iniciativas - financeiras e organizativas - para dotar o clube de condições para singrar). Se as redes para as balizas (e provavelmente os postes e as traves) vinham das embarcações de pesca dos Rosa Rodrigues da Ericeira e Nazaré, o resto era tratado por Gourlade. Era ele que orientava os treinos, registava as presenças, adquiria bolas e utensílios ou, sendo poliglota, escrevia para Inglaterra, fazendo ele do «inglês» que outros clubes tinham (pelo menos um) e o Sport Lisboa...não. Era ele o «nosso inglês»! Não tanto a jogar mas a facilitar a "logística"!
O «nosso inglês» permitia ao Clube ter acesso, directamente de Inglaterra (Reino Unido), ao melhor que havia para o Futebol em vez de adquirir o que os ingleses a viver em Portugal já não queriam.
O Clube acima de tudo
É que com a entrada progressiva de casapianos "bons de bola" relegou-o para a segunda equipa, como guarda-redes, ou seja, «autorrelegou-se» pois consta que era ele que organizava os plantéis e orientava as duas equipas. E é dele a ideia (mais uma) de reservar um pouco de energia durante os jogos - ou pelo menos não a esbanjar em inutilidades durante os encontros - para ter nos últimos 15 minutos capacidade, se fosse necessário, para empatar jogos aparentemente perdidos ou vencer jogos aparentemente empatados.
Consta que o amor ao Clube levou longe de mais o seu esforço
Empolgado com o Clube que depressa passara de mais um clube a "Glorioso" pois derrotara os mestres invencíveis do Cabo Submarino, em plena Quinta Nova, Carcavelos, o Carcavellos Club (10 de Fevereiro de 1907) e depois sofrendo com a deserção no Verão desse ano, para o Sporting CP, de vários associados - quatro fundadores - incluindo sete futebolistas titulares e mais um futebolista reformado a jogar no segundo team - Manuel Gourlade fez com que contas da Farmácia e do Clube se confundissem. Em breve deixou a Farmácia Franco, mas deslocando-se com o Clube de Belém para Benfica o apego nas margens do Tejo eram mais fortes pois foi aí que passou a "ganhar a vida" como tradutor entre docas e navios que aportavam a Lisboa.
Envelhecimento precoce
Com uma vida que dependia de alguns dias bons e muitos maus o sucedâneo de maus fizeram temer o pior tanto que Daniel Santos Brito temeu pela facto de andar sempre pela borda dos cais em passo errante e más ideias. E foi melhor interná-lo num Lar de Idosos, em Campolide. Lar que tinha, então o nome de Asilo, neste caso Asilo D'Espie Miranda junto aos arcos do Aqueduto das Águas Livres, na encosta de Monsanto, junto à outrora ribeira de Alcântara hoje canalizada por baixo de acessos ao eixo Norte-Sul e avenida de Ceuta.Foi Daniel Santos Brito que lhe levou o crescimento do Benfica
Entrou para o asilo, em 5 de Julho de 1926, aos 55 anos (a confirmar com mais rigor) e lá ficaria até falecer, em 9 de Janeiro de 1944, com 71 anos. Foi o seu amigo, companheiro no futebol e colega da farmácia que lhe ia levando as notícias dos primeiros êxitos nacionais do clube que nasceu (depois de uma ideia sua de juntar os melhores dos miúdos de Belém de início do século XX aos casapianos afamados de finais do século XIX), após o organizar até 1908 e de dar impulso nas «Asas da Águia» ao seu continuador Cosme Damião que soube engrandecê-lo e transformar a Ideia em Ideal. Cosme Damião sempre reconheceu em Gourlade a alma e o alicerce que permitiu depois a ele, enquanto ideólogo, fazer mais do muito que recebera de Gourlade. Acreditamos que foi com rasgado sorriso que Gourlade saboreou os títulos de 1930, 1931 (BI no campeonato de Portugal), 1933 (recuperar o título de campeão regional perdido desde 1920), 1935, 1936, 1937, 1938 (TRI no campeonato da I Liga), 1940 (um BIS com Regional e Taça de Portugal), 1942 e 1943 (BI no campeonato nacional da I Divisão e a primeira "dobradinha" com a Taça de Portugal). Uma vida de sacrifício chegou ao seu final com um sorriso nos lábios e coração ardente de dever cumprido. Aquela azáfama de início de século, entre as papeladas na Farmácia Franco, os logradouros à beira Tejo, as irritações com quem faltava a acordos e compromissos não cumprindo horários e combinações, as cartas para e de Inglaterra, as estações de correio, alfândega, marcações a corda e cal, balizas às costas e as Terras do Desembargador, não tinham sido em vão. Antes pelo contrário. Estava ali não mais um clube, mas O Clube. Gourlade pode ter ido repousar para o Asilo mas depois todos conhecemos o que se passou
Eis o maior entre os maiores antes de sermos Clube e nos primeiros tempos após o sermos. Manuel Gourlade passou o testemunho a Cosme Damião e este transformou a Ideia em Ideal, o Benfica em Benfiquismo. Digam lá se em todos nós que somos o Benfica, que por vezes ultrapassamos o limite do razoável, que fazemos planos, que compramos e oferecemos Benfica, se não há um Gourlade dentro do nosso coração Benfiquista. Aquele pedaço do nosso músculo das emoções que nasceu e há-de morrer Benfica - que são das poucas células a par de algumas do cérebro que nunca se renovam mesmo que se viva 120 anos - tem um nome, só pode ter um nome, músculo Gourlade.Gourlade a alma mater do "Glorioso"! O nosso lado do coração à Benfica!
Alberto Miguéns
NOTA À PARTE: Especial agradecimento ao dedicado leitor deste blogue Victor João Carocha (pela ilustração que encima este texto e descobertas fascinantes da vida de Manuel Gourlade) e a um dos filhos da família Rosa Rodrigues pelos pormenores que pai e tios contavam acerca da pré-fundação e início do Clube.
NOTAS FINAIS:
1. Registo de baptismo (31 de Outubro de 1872)
1. Registo de baptismo (31 de Outubro de 1872)
2. Registo de óbito (9 de Janeiro de 1944)
3. Cosme Damião (Jornal "A Bola" n.º 11; 5 de Março de 1945; Página 5)
4. Daniel Santos Brito (Jornal "Ecos de Belém; 28 de Outubro de 1950; Página 2)
5. História do Sport Lisboa e Benfica 1904/1954; Mário de Oliveira/Rebelo da Silva (1954; Fascículo n.º 1; páginas 17 a 21/excertos)
Um profundo respeito e carinho pela alma de Manuel Gourlade, figura maior do Sport Lisboa e Benfica. Eterno.
ResponderEliminarRetirado para o asilo D'Espie Miranda no ano em que Cosme Damião deixava a condução do futebol Benfiquista, Manuel Gourlade passou os últimos 18 anos numa instituição recatada, num local onde ali perto se disputavam muitos jogos de futebol.
No mesmo dia em que Gourlade morria, o seu Benfica jogava na Tapadinha. Um dia infeliz.
Figura maior, vida trágica, mas que se sublima pela semente que deixou e pela memória que lhe é tributada pelos Benfiquistas sabedores.
A Manuel Gourlade deve ser reconhecida a estatura moral e produtiva como é devida a Félix Bermudes e Cosme Damião. À capacidade, sabedoria e voluntarismo de Manuel Gourlade deve o nosso Clube a sua própria existência, ultrapassado que foi um tempo em que tudo era novo e difícil, e em que o mais provável seria que o Clube perecesse tal como dezenas de outros.
Manuel Gourlade legou-nos o Clube. Saibamos nós merecer esse legado, e nunca esquecer os Ases que nos honraram o passado.
Descansa em Paz, Manuel Gourlade.
Boa tarde, simplesmente notável o seu trabalho, obrigado Sr. Alberto.
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