IR DE BELÉM PARA BENFICA ERA BOM PARA JOGAR. E O
RESTO…
Depois do sobressalto do Verão de 1907 (deserção dos
principais futebolistas e de mais uma dezena de associados) percebeu-se que o
Clube tinha de conseguir resolver definitivamente o problema de não ter campo
próprio e treinar/jogar em terrenos públicos nas Terras do Desembargador onde
tinha que partilhar o espaço com a tropa dos quartéis instalados na calçada da
Ajuda.
Uma feliz composição cronológica de Marcolino Bragança realizada pelo leitor deste blogue, Victor João Carocha |
Marcolino e a sua ideia mágica
A solução de não acabar com o Clube inscrevendo os
futebolistas da 2.ª categoria de 1906/07 como 1.ª categoria em 1907/08 foi
fantástica mas não era mais que adiar o problema. A temporada não correu mal
porque os futebolistas eram de classe acima da média para uma segunda
categoria. No campeonato regional o “Glorioso” (assim conhecido desde a vitória
sobre os ingleses do Carcavellos Club em 10 de Fevereiro de 1907)
classificou-se atrás do Carcavellos Club (Bicampeão) e do Sporting CP (que
contava com oito “Gloriosos” de 1906/07)! Sporting CP à nossa frente!? Assim também eu, é caso para dizer. Ou seja, a
segunda categoria mostrava que Marcolino Bragança tinha razão. Em 1906/07 era
quase tão boa como a primeira! E provou-o em 1907/08.
A categoria dos “espertos”
Foi Cesina Bermudes, filha de Félix Bermudes, que me contou em
finais dos anos 90 que o pai dizia que a primeira categoria em 1906/07 podia
ser conhecida como “dos bons”, mas a segunda era a dos “espertos”. João
Persónio (taquígrafo nas Cortes de São
Bento), Félix Bermudes (escritor
dramaturgo), Cosme Damião
(secretário da Casa Palmela, uma espécie de CEO daqueles tempos de uma das
famílias nobres mais poderosas em Portugal), José Netto e Francisco
Santos (escultores), José Rosa
Rodrigues (armador), Manuel
Gourlade (fluente em francês e inglês,
além de contabilista), Leopoldo Mocho (curso comercial) e Marcolino Bragança (estudante liceal e “futuro inventor de laranjas
adocicadas”). Nove em onze. Entre 1904/05 e 1906/07! E haverá outros que ainda
não se sabe a profissão ou aptidão!
Em 1950, Daniel Santos Brito escrevia acerca das boleias, embora para comentar a ida para um jogo frente aos ingleses do New Cruzaders FC em 1912/13 |
Benfica
A ideia da junção em 1908 sem que os dois clubes (Sport
Benfica e Sport Lisboa) perdessem a sua individualidade foi genial. Uma forma
do Sport Lisboa “mandar” no futebol – na sua “gestão” – passando a dispor de
infraestruturas (campo e Sede) e superestrutura (dirigentes) que os libertasse
de preocupações desnecessárias para quem o único interesse que tinha do
desporto era jogar cada vez melhor futebol.
E os de Belém?
Para quem vivia por Lisboa mais central conseguia chegar a
Benfica com alguma rapidez (velocidade reduzida hoje se comparada com 1908!)
mas e o núcleo maior de futebolistas (cerca de 40 para as três categorias) que
vivia em Belém? Como chegar de Belém a Benfica para jogar e a seguir regressar a
Belém depois do jogo?
Calcorrear Monsanto
Benfica ficava (e fica) a norte de Belém mas tem uma "ilha" a
separar os dois locais. Actualmente é um Parque Florestal, mas em 1908 (até
1945) era um descampado com grandes terrenos semeados com cereal. Até ao
Palácio da Ajuda havia habitações depois só uns quantos quilómetros mais à
frente no Calhariz de Benfica. A sorte é que por vezes o percurso não era
pedestre. O carrão do Conde do Restelo dava boleia a uma catrefada de “Gloriosos”
que poupavam nas solas das chuteiras. Iam revezando-se de jogo para jogo. Para
os “pedestres” era o aquecimento para o jogo com o chafariz das Garridas como
oásis, já com o campo na quinta da Feiteira à vista. Conta a filha Milita, que mesmo
em Angola, Marcolino andava que até cansava de ver. Pudera. Quem faz Monsanto a
pé, ida-e-volta, várias vezes por ano, em adolescente, fica “vacinado” para o resto da vida! Eu
desde que sei isto, quando faço o mesmo percurso em alcatrão, até de carro fico cansado!
Boa água abundava em Monsanto. Aqui uma bica num muro da enorme estrada das Garridas que começava (ou acabava) onde está na actualidade o terreno de jogos do Casa Pia AC: o popular "Pina Manique" |
Aquecimento e desentorpecimento
Belém, calçada da Ajuda, estrada dos Marcos, estrada do
Penedo, estrada de Monsanto, estrada do Outeiro e estrada das Garridas até
juntar-se à rua Direita de Benfica (actual estrada de Benfica) no chafariz das
Garridas. Devem ser bem meia dúzia de quilómetros a subir e depois a descer e ao
contrário à vinda. Equipados com as flanelas vermelhas deviam de parecer papoilas rubras ao vento em campos esverdeados-amarelados por caminhos de terra-batida. De carro seria mais rápido sempre na expectativa de um
encontro imediato com algum animal de quatro patas a atravessar-se no caminho
do FIAT do Conde do Restelo. Para empatar! Um grupo que só pensava em vencer. E
vencer. E vencer. Insaciáveis!
Marcolino Bragança. À boleia ou a pé
ninguém o conseguiu fazer esquecer a sua juventude! O que o “Glorioso” provoca
em nós!
(continua)
Alberto Miguéns
NOTA FINAL: O percurso indicado ao pormenor baseia-se no que seria o caminho "mais curto" baseado num mapa da época - Levantamento Topográfico da Cidade de Lisboa (1904-1911) de Júlio Silva Pinto. O que não quer dizer que fosse esse e o mesmo para todos até porque de Belém a Monsanto havia mais calçadas a convergirem nessa colina da cidade. E nem sempre em áreas agrícolas o caminho mais curto é o melhor. Do que eles não teriam falta durante o percurso era de fontes com água potável e da boa. As características geomorfológicas de Monsanto - manto basáltico sobre calcário - em tempo de cultivo dos campos favorecem o aparecimento de níveis freáticos pontuais à superfície.
Que detalhes deliciosos. Que tarde magnífica que a filha e a neta de Marcolino terão tido.
ResponderEliminarDesde o FIAT (bela carripana, até eu gostava de a conduzir), até à muar (coitada), até à equipa dos espertos, até essas magníficas caminhadas que muito esforço e dedicação deveriam exigir.
Fica claro o amor à camisola. Fazer esses quilometros a pé era obra. Grandes pioneiros!
Grande texto, grandes reconstrução. Fabulosos detalhes. Obrigado!
Tenho seguido esta viajem ao passado com muito interesse,quem me dera ter uma maquina do tempo para ir ver esses jogos e falar com todos esses herois.Mas tenho uma pergunta a fazer,eu sou de Campo De Ourique e cresci mesmo perto dos Alunos de Apolo,tambem perto das Amoreiras,a minha pergunta e onde ficava o Estadio das Amoreiras?Era perto de onde sao as Amoreiras?Eu sei que tivemos de abandonar esse Estadio devido a Avenida Duarte Pacheco,mas mais ou menos onde ficava o Estadio?Eu tenho um grande orgulho tambem de a minha familia da parte da minha mae ser de Belem e apesar do meu avo ser Belenenses acho que estava no meu destino ser do Glorioso.
ResponderEliminarCaro
EliminarFicava (a maior parte) onde é o Liceu Francês. Já mostrei imagens do estádio e da avenida (ainda existe) que o inutilizou em 17 de Setembro de 2015. Pode consultar neste blogue em:
http://em-defesa-do-benfica.blogspot.com/2015/09/lagrimas-nos-olhos_17.html
TriGloriosíssimas Saudações
Alberto Miguéns
Só nos tornamos ainda mais fortes, se soubermos honrar o nosso passado e de quem semeou o Glorioso!!!
ResponderEliminarAo ler estes saborosos nacos de prosa com que o Miguéns faz o favor de nos obsequiar, até parece que estou numa biblioteca...GLORIOSA !!!