QUEM DIRIA QUE O GLORIOSO TAMBÉM TEVE DERROTAS
POR FALTA DE COMPARÊNCIA?
Livro da autoria de Cosme Damião, em 1925 |
Quando fizer uma Enciclopédia Histórica e Ilustrada do SL
Benfica na sexta letra, a letra "efe" haverá que incluir a
"Falta de Comparência". A História dos Clubes não é apenas feita de
momentos de exaltação. Mas a curiosidade neste caso da letra "F" reside
no facto destas duas derrotas por falta de comparência serem motivo de orgulho!
Contradição? Talvez não! Foram faltas de comparência premeditadas.
As faltas de comparência
Cosme Damião abominava as faltas de comparência muito
frequentes num tempo em que o futebol era amador e os vínculos dos futebolistas
(e outros atletas de outras modalidades) não eram de trabalho mas apenas de
empatia, embora sempre de responsabilidade. Para Cosme Damião a pontualidade
era uma das características que melhor definiam a personalidade de um atleta
por dois motivos: revelavam um carácter de cumpridor e de respeito pelos outros
jogadores, pois não obrigava a equipa a jogar enfraquecida com menos um, dois
ou três futebolistas ou mesmo anular o esforço de muitos em comparecerem ao
jogo para depois a ausência de quatro ou cinco inviabilizarem esse jogo. Além
disso Cosme Damião considerava que uma derrota por falta de comparência
penalizava fisicamente a equipa (zero pontos num tempo em que existiam
competições com um ponto por derrota) e moralmente provocava danos de monta:
negligência e desorganização que não auguravam nada de bom para essa equipa e
para o clube que permitia tal desleixo!
Foram precisos 695 jogos para a primeira
falta de comparência do Glorioso
O "Glorioso" conseguiu atravessar quase três
décadas (1905 - 1933) sem a sua equipa de 1.ª categoria no futebol averbar
qualquer derrota por falta de comparência (em jogos para competições oficiais)
ou ver jogos anulados (particulares e torneios não oficiais) por apresentar a
equipa em inferioridade numérica face às Leis do Jogo. E vencem alguns, até ao
Sporting CP, por falta de comparência dos adversários. Fazer quase 700 jogos no
tempo em que o futebol era mais complicado por ser amador sem punição com falta
de comparência é notável. Mas algum dia havia de chegar não uma mas duas faltas
de comparência no campeonato regional de Lisboa em 1933/34. Com o Benfica como
campeão regional conquistado na temporada anterior, em 1932/33.
As piores classificações de sempre
Essas duas faltas de comparência implicaram não só a
impossibilidade de lutar pela revalidação do título de campeão regional como
obter a pior classificação de sempre do Benfica em competições oficiais a
pontuar, em valor relativo - ser 6.º classificado entre dez clubes - e em valor
absoluto - 6.º lugar - apenas igualado em 2000/01 - 68 épocas depois - com o 6.º
lugar no campeonato nacional da I Liga/ I Divisão entre 18 clubes.
CLASSIFICAÇÕES DO GLORIOSO
NO CAMPEONATO NACIONAL
1934/35 - 2013/14 (80)
Clas.
|
N.º
Edições
|
Última época
|
1.º
|
33
|
2013/14
|
2.º
|
27
|
2012/13
|
3.º
|
15
|
2008/09
|
4.º
|
4
|
2007/08
|
6.º
|
1
|
2000/01
|
Totalista (único clube) nas 41 edições do
campeonato regional de Lisboa
O Benfica nos registos dos 41 campeonatos regionais de
Lisboa, entre 1906/07 e 1946/47, averbou
406 jogos, 248 vitórias, 60 empates, 98 derrotas e 1170 golos marcados para 546
golos sofridos. Mas na "verdade" são 408 jogos, 248 vitórias, 60
empates, 100 derrotas (duas por falta de comparência) mantendo-se o número de
golos pois as faltas de comparência eram punidas apenas em pontos (zero
pontos).
CLASSIFICAÇÕES DO GLORIOSO
NO CAMPEONATO REGIONAL
1906/07 - 1946/47 (41)
Clas.
|
N.º
Edições
|
Última época
|
1.º
|
10
|
1939/40
|
2.º
|
19
|
1946/47
|
3.º
|
6
|
1938/39
|
4.º
|
2
|
1945/46
|
5.º
|
3
|
1930/31
|
6.º
|
1
|
1933/34
|
NOTA: Em 1906/07 e 1907/08 com o nome de Sport Lisboa
A história que levou às duas faltas de comparência
Não é fácil simplificar uma das páginas menos edificantes do
futebol português como resultado de resoluções de nível administrativo,
desportivo e judicial, em que estes dois últimos aspectos tiveram influência
directa na tomada de resolução premeditada do Benfica não comparecer a dois
jogos, por questões de coerência e solidariedade com os órgãos regionais que superintendiam
o futebol.
Nível administrativo
Desde o "princípio dos tempos" (Lei da Reforma
administrativa, em 18 de Julho de 1835, de Mouzinho da Silveira) até 22 de
Dezembro de 1926 não existia o Distrito de Setúbal. Este apenas foi criado pela
Ditadura Militar , na data referida, com concelhos até aí pertencentes ao
Distrito de Lisboa (a norte do rio Sado) e a Beja (a sul do rio Sado). Quando a
Associação de Futebol de Lisboa (AFL) foi fundada, em 23 de Setembro de 1910,
filiaram-se nela todos os clubes pertencentes a localidades que estavam em
concelhos que pertenciam ao Distrito de Lisboa, incluindo os concelhos do
Barreiro e Setúbal, por exemplo.
Nível desportivo
Depois da criação do Distrito de Setúbal (22 de Dezembro de
1926) foi fundada a Associação de Futebol de Setúbal (AFS) em 5 de Maio de
1927. Os clubes que estavam filiados nas duas associações (AFL e Associação de
Futebol, de Beja) foram instados a desvincularem-se destas Associações e
filiarem-se na AFS. Não foi um processo pacífico, pois alguns clubes, em particular
os do Barreiro alegavam que era mais cómodo - fácil, acessível e económico -
jogarem na cidade de Lisboa que deslocarem-se a Setúbal e outros concelhos para
disputarem o campeonato regional. Entre várias peripécias durante largos anos e
épocas, que não vão alongar o texto de hoje, em 9 de Setembro de 1933, o
Congresso do Futebol da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) obrigou os dois
resistentes do Barreiro - FC Barreirense e Luso FC - a desfiliarem-se da AFL e
filiarem-se na AFS, obrigando a Direcção da AFL a cumprir a resolução
desfiliando unilateralmente esses dois clubes à revelia pois os seus dirigentes
queriam continuar a disputar o campeonato regional de Lisboa.
Uma equipa do FC Barreirense com o seu equipamento dos primórdios: camisola bipartida a vermelho e branco, calção branco e meias pretas |
Nível judicial
Depois de serem desfiliados à força os dois clubes do
Barreiro - FC Barreirense e Luso FC - levaram o caso a tribunal alegando que
estando filiados na AFL, aceites por esta e sempre com os pagamentos e
procedimentos cumpridos com lealdade não podiam ser impedidos de exercer os
seus direitos tendo cumprido os seus deveres.
Primeira parte da temporada em 1933/34
Intimada pela FPF, na sequência da resolução do seu
Congresso de 1933 (9 de Setembro) a AFL desfiliou os dois clubes do Barreiro e
organizou o sorteio e o campeonato regional sem a presença do FC Barreirense e
Luso FC enquanto estes recorriam, por não concordar, para os Tribunais Civis. O
calendário ocupava 14 domingos, entre 29 de Outubro de 1933 (1.ª jornada) e 15
de Abril de 1934 (14.ª jornada). O Benfica defendia o título de campeão
regional conquistado em 1932/33, após um interregno inédito de 12 temporadas
pois o último havia sido conquistado em 1919/20 uma época depois da fundação do
CF "Os Belenenses" (23 de Setembro de 1919) e imediatamente antes da
fundação do Casa Pia AC (14 de Junho de 1920) os dois principais locais de
recrutamento de futebolistas para o "Glorioso" bem como o afastamento
de inúmeros associados e futebolistas, em particular para o Casa Pia AC que
depois foi logo campeão regional de Lisboa em 1920/21 com oito ex-futebolistas
do SLB.
Muita fé e expectativa entre os Benfiquistas de então
Entre os Benfiquistas, o sorteio foi considerado favorável
ao Benfica, pois deixava para a segunda volta a resolução do título, visto o
Benfica receber, no estádio das Amoreiras, os dois principais rivais: CF
"Os Belenenses", na 11.ª jornada e o Sporting CP na 13.ª e decisiva
jornada. A equipa fez uma primeira volta aceitável apenas cedendo duas derrotas
nas deslocações ao terreno dos rivais: CF "Os Belenenses" e Sporting
CP, respectivamente, 2.º e 3.º classificados no campeonato anterior. Em 2.º
lugar com 17 pontos - a dois da liderança - divinhava-se uma segunda volta
decisiva, mas na qual o Benfica dispunha da capacidade de sagrar-se Bicampeão,
pois recebia o CF "Os Belenenses" (1.º lugar) e o Sporting CP (5.º
lugar com 13 pontos), bem como o União Futebol de Lisboa (também com 17
pontos). Esta 8.ª jornada (recepção ao União FL) e a 9.ª jornada (deslocação ao
estádio da Tapadinha, frente ao Carcavelinhos FC, também com 17 pontos) seriam
decisivas para o desfecho final e perceber o grau de possibilidades nos
confrontos decisivos das 11.ª e 13.ª jornadas, visto os adversários também
terem de se defrontar como é óbvio!
CAMPEONATO DE LISBOA 1933/34
Adversário
|
1.ª volta
|
2.ª volta
|
||||
S
|
Res
|
Jr
|
Jr
|
S
|
Res
|
|
União F. Lisboa
|
F
|
V 2-1
|
1.ª
|
8.ª
|
C
|
|
Carcavelinhos FC
|
C
|
V 2-1
|
2.ª
|
9.ª
|
F
|
|
S. Bom Sucesso
|
C
|
V 4-1
|
3.ª
|
10.ª
|
F
|
|
CF "Os Belenenses"
|
F
|
D 1-2
|
4.ª
|
11.ª
|
C
|
|
Casa Pia AC
|
C
|
V 5-0
|
5.ª
|
12.ª
|
F
|
|
Sporting CP
|
F
|
D 1-2
|
6.ª
|
13.ª
|
C
|
|
Chelas FC
|
C
|
V 3-0
|
7.ª
|
14.ª
|
F
|
Entretanto quando termina a primeira volta, em 17 de
Dezembro de 1933, surge a notícia que os dois clubes do Barreiro ganharam a acção
judicial e que a FPF é obrigada a cumprir o que os Poderes Públicos decidiram,
naquela que foi a primeira vez que o futebol foi confrontado com uma decisão
tomada "fora dele" sendo obrigado a executar essa ordem. A FPF obriga
a AFL a refiliar o FC Barreirense e o Luso FC, respectivamente, 4.º e 8.º classificados
no campeonato regional de 1932/33, entre dez emblemas. A Direcção da AFL não
concorda em ser tratada como "marioneta" da FPF, pois esta devia
perceber se tinha ou não condições para ter ordenado a desfiliação dos clubes
do Barreiro. A AFL não era joguete de ninguém obedecendo a ordens
contraditórias num pequeno espaço de tempo. O Benfica solidarizou-se com a
"sua" AFL e entendia que os dirigentes também por si escolhidos
tinham capacidade para decidir, não podendo ser "moços de recados" de
ninguém.
Jornal "Os Sports" 22 de Dezembro de 1933; 1.ª página |
Os outros cederam... o Benfica NÃO!
A comissão que toma conta dos destinos da AFL, obrigada a
cumprir a ordem da FPF refilia os dois clubes do Barreiro, procede a novo sorteio
do campeonato regional, a uma volta, incluindo o FC Barreirense e o Luso FC, em
nove jornadas e reclassifica a primeira volta entretanto efectuada como
"Torneio de Outono" considerando-a oficial (como era óbvio pois foi
assim que tinha sido disputada) tendo como vencedor o CF "Os
Belenenses".
O "Glorioso" anunciou, desde logo, que mantinha a
coerência e solidariedade. Se votara a favor da desfiliação dos clubes do
Barreiro e apoiara a Direcção da AFL então não devia haver campeonato regional
em 1933/34. A haver não compareceria aos dois jogos com os clubes do Barreiro!
Segunda parte da temporada em 1933/34
Com apenas oito jornadas, a uma volta, e sabendo que em duas
teria falta de comparência, ou seja zero pontos, nem sequer o ponto da derrota
seria somado, os dirigentes, futebolistas, associados e adeptos sabiam que o
preço a pagar, pela coerência e solidariedade, seria muito elevado. E foi!
Apesar de apenas duas derrotas em campo - nos terrenos do União FL e do
Carcavelinhos FC (que um dia, em 18 de Setembro de 1942, haveriam de se unir
para formar o Atlético CP) - o SL Benfica classificou-se num inédito 6.º lugar
(entre dez clubes) piorando numa posição a classificação de 1930/31. O FC
Barreirense continuaria na AFL até... 1936/37, ou seja mais três temporadas. O
Luso FC decidiu após a 2.ª jornada filiar-se na AFS, fazendo apenas um jogo -
vitória por 2-1 frente ao Casa Pia AC - mas com duas vitórias, incluindo a da
1.ª jornada por falta de comparência do SL Benfica. Para quem
fizera tanto ruído...
Jornal "Os Sports" 30 de Abril de 1934; 6.ª/ última página |
Na História do Glorioso Futebol ficaram
dois jogos (talvez apenas um) por realizar
Além do "azar" do sorteio emparelhar na 1.ª
jornada (21 de Janeiro de 1934) com o pouco coerente Luso FC, que em 14 de Fevereiro
de 1934 viria a filiar-se na AFS há ainda a falta de comparência de 18 de
Fevereiro de 1934, na 3.ª jornada do campeonato regional de Lisboa. Se em 21 de
Janeiro o "Glorioso" não jogou ficando inactivo em 18 de Fevereiro
substituiu o jogo com o FC Barreirense por uma ida a Coimbra, onde no campo do
Arnado (do SC Conimbricense) defrontou a equipa da Associação Académica de
Coimbra, empatando a dois golos, ambos da autoria do comediante Eugénio
Salvador (com uma pequena homenagem no final do texto de hoje). Assim em vez dos 5 031 actuais, pelo menos, o Benfica somaria mais
um. O do Luso FC! E não teria duas faltas de comparência! Em vez de 165 jogos
com equipas da Associação Académica de Coimbra teria 164! Em vez dos 96 jogos
com o FC Barreirense teria 97! E em vez dos 14 jogos com o Luso FC teria 15!
Mas...
A coerência pode trazer incómodos no
presente mas alcança vitórias no futuro!
Não seria motivo de orgulho no futuro. Teria provavelmente mais
um ou dois jogos. Teria uns quantos a mais e a menos frente a outros emblemas. Não
teria faltas de comparência em jornadas do campeonato regional de Lisboa. Poderia
ter mais um título de campeão regional e certamente não teria a pior
classificação de sempre do "Glorioso". Mas teria sido incoerente,
embora isso fosse varrido da memória e da história. Não o saberíamos! Assim não
foi. O que foi feito em 1934 ficou para sempre. E ficou para sempre para termos
altivez no passado.
Que orgulho nos nossos dirigentes. Na sua
coerência. Mesmo que isso tenha custado ao "Glorioso" as duas únicas
faltas de comparência e a pior classificação de sempre do Benfica!
Alberto Miguéns
O pequeno grande Eugénio Salvador (31 de Março de 1908 a 1 de Novembro de 1992). De ponta esquerda do Futebol Benfiquista a ponta esquecida do teatro e cinema português
Do Teatro
Para o Cinema
Sempre com o Benfica
Eusébio, Amália, Eugénio Salvador e João Santos, presidente da Direcção do Sport Lisboa e Benfica, entre 1987 e 1992 |
Plano para Junho/ Julho
(Previsão sempre à meia-noite)
De 25 para 26: Atenção ao "Futeluso -
versão 2015";
De 26 para 27:
Oitocentos Anos;
De 27 para 28: Notícias
da Nossa Selecção (parte III);
De 28 para 29: Três Dias do Basquetebol (Última década);
De 29 para 30: Três Dias do Basquetebol (2013/14);
De 28 para 29: Três Dias do Basquetebol (Última década);
De 29 para 30: Três Dias do Basquetebol (2013/14);
De 30
para 01: Três
Dias do Basquetebol (Todos os campeões);
De 01 para 02: Notícias
da Nossa Selecção (parte IV);
De 02 para 03: Três Dias
do Hóquei em Patins (Última década);
De 03 para 04: Três Dias do Hóquei em Patins (2013/14);
De 03 para 04: Três Dias do Hóquei em Patins (2013/14);
De 04
para 05: Três
Dias do Hóquei em Patins (Todos os campeões);
De 05 para 06: Notícias
da Nossa Selecção (parte V);
De 06 para 07: Gostava Tanto Que..;
De 06 para 07: Gostava Tanto Que..;
De 07 para 08: Tanta e
Tanta Glória Benfica (Golo 27 mil);
De 08
para 09: Eu Benfiquista no Museu do FCP by BMG (parte II);
De 09 para 10: Notícias
da Nossa Selecção (parte VI);
De 10 para 11: Três Dias do Voleibol (Última década);
De 11 para 12: Três Dias do Voleibol (2013/14);
De 10 para 11: Três Dias do Voleibol (Última década);
De 11 para 12: Três Dias do Voleibol (2013/14);
De 12
para 13: Três
Dias do Voleibol (Todos os campeões);
De 13 para 14: Notícias da
Nossa Selecção (parte VI);De 14 para 15: Centenário da Gloriosa Natação (parte II)
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