Ou como andando eu à procura de fotografias de Eusébio descobri cadernetas, histórias, desejos e cromos de futebolistas perdidos na minha infância e adolescência
Quando era miúdo,
ainda a viver na Figueira da Foz, melhor nos seus arredores, no bairro pobre do Casal do Rato, "terra" de estivadores, pescadores, ferroviários, estropiados e bêbados, via o Benfica a preto-e-branco numa televisão
semi-pública numa taberna, pois não havia dinheiro para ter uma em casa. Foi
também nessa televisão que vi, juntamente com uma pequena multidão os jogos do
Mundial de 1966. Tinha cinco anos.
Um Mundo
Novo
Em Julho de 1967, com
seis anos, a minha família (pai e mãe) mudou-se para Lisboa, passando a alugar
uma "parte-de-casa" na Rua Senhora da Glória, n.º 86 - 1.º Esquerdo.
Perto da minha casa, melhor dessa "parte-de-casa", a cerca de 20
metros na rua do Sol à Graça, n.º 11 ficava a papelaria do "Gordo". A
primeira visita a essa lojinha de palmo-e-meio foi como descobrir que o mundo era muito maior do que pensava.
Havia papéis com os jogadores do Benfica de vermelho, os cromos da bola. Nunca
na Figueira da Foz havia visto tal coisa, o que não quer dizer que não
existissem. Para mim, até visitar "o Gordo" não existiam cromos e
cadernetas.
Ainda existe a papelaria. Infelizmente "O Gordo" já faleceu |
A temporada
de 1966/67
Acabado de chegar a Lisboa, vindo da Figueira da Foz, no verão de 1967
estava a terminar a época de futebol. Sei agora que o "Glorioso"
jogou pela última vez "oficialmente" em 18 de Junho de 1967,
eliminado da Taça de Portugal pela equipa da Associação Académica de Coimbra e
o último encontro foi três dias depois (21) em Angra do Heroísmo, num 6-1
frente ao SC Angrense, delegação do "Glorioso" na Ilha Terceira dos
Açores.
Caderneta
com descontos
Em face do findar da
temporada de 1966/67 e havendo ainda cadernetas e cromos em boa quantidade n'
"o Gordo" a minha mãe descobriu que estavam mais baratos. Afinal a
inicial recusa em comprar papéis sem valor a meu pedido, teve um "volte-face".
Um belo dia chegou a casa, melhor à "parte-de-casa" com uma caderneta
e meia dúzia de cromos enrolados num rebuçado. Aos seis anos foi o dia mais feliz da minha
vida. Ainda por cima havia um ou dois Benficas entre os cromos! Pedi cola. Não
havia cola mas a minha mãe lá a arranjou molhando farinha, penso que era assim
que se fazia "cola caseira"! Como? Não sei! Mas que colava, colava! As cadernetas ficavam era com o dobro da espessura e o triplo do peso! Sem muito espaço dentro de casa, melhor
na "parte-de-casa", fui colar os cromos para o parapeito da única janela que estávamos
autorizados a utilizar pelo senhorio (que afinal era inquilino!).
Primeiro os do Benfica!
Muitos cromos do Benfica eu colei no parapeito dessa janela por cima da porta de entrada no prédio |
Pouco jeito
para coleccionar
Em breve soube que
tinha pouca paciência e método para fazer coleccionismo. Talvez por isso admire
- ainda hoje - quem consegue coleccionar o que quer que seja! Raramente completava as cadernetas
até porque havia cromos muito difíceis de sair. Mesmo com trocas e baldrocas
quase nunca completava as cadernetas.
Cromos só
do Benfica
Em breve arranjei um
"esquema". Comprava as cadernetas mas só completava as páginas do
Benfica. Só coleccionava os cromos do "Glorioso". Chegava a trocar
dez dos "outros" por um do Benfica! Acho que o recorde foram trinta
dos "outros" por um do Artur Jorge. Já nos anos 70.
Este cromo - um Artur Jorge 71/72 - valeu... 30! Tenho essa ideia, embora certezas a mais de 40 anos de distância... |
Mudanças e arquivos
O facto de ter mudado
de casa(s), melhor de "partes-de-casa", e as poucas condições em ter
espaço para acomodar essas 15 ou 20 cadernetas apenas com a página ou páginas (às
vezes eram duas) do Benfica preenchidas, foi "meio-caminho" para terem
sido perdidas com a passagem implacável dos anos, da década de 60 e 70 - quando
coleccionei os "Benficas em cromos e cadernetas" - para a actualidade.
No século XXI restam-me cinco colecções de cromos de desporto, uma de hóquei em
patins e quatro de futebol, incluíndo uma dos "Internacionais portugueses". Que nem sei por onde "andam". Talvez
estejam na minha aldeia de Montalvão, num sótão.
Surpresa e
interrogações
Quando coleccionava
os cromos surpreendia-me com as escolhas do "dono dos cromos". Porque
escolheria ele aqueles onze e não os outros, que faziam parte de plantéis muito maiores que onze e que
no Benfica chegavam a ser trinta! E interrogava-me se aqueles onze eleitos pelo
"dono dos cromos" alguma vez fariam mesmo um "Onze" e que
resultados obteriam! Mal sabia eu que um dia teria, saberia, todos os jogos e "onzes" do
"Glorioso". E poderia responder a tal questão. Só que quando soube
todos os onzes do Benfica deixei de ter as cadernetas dos "cromos
Benfica"! Quando as tinha não podia responder à questão. Quando podia
responder não as tinha! Um típico caso de casamento entre a mulher a dias e o guarda-nocturno.
Nunca se encontram!
Eis que a
internet tudo mudou
Andava eu há dias a
fazer umas pesquisas para ter imagens do Eusébio quando encontro esta imagem.
E atrás dela - como é
próprio da internet - fui parar a um portal/ blogue (Mística de Cadernetas
Digitalizadas) de um Benfiquista de Famalicão, Joaquim Lima que digitalizou e
colocou na internet um número "infindável" de cadernetas e páginas
com "cromos Benfica" desde os anos 30. E não é que encontrei a "célebre
primeira caderneta de 1966/67", não a minha penso eu, mas uma semelhante, à tal que foi comprada n'
"o Gordo".
Finalmente
junta-se o agradável (os cromos) ao útil (os jogos)
Assim, passados 37
anos, entre 1967 e 2014 consigo (finalmente...) saber quantos jogos fizeram
aqueles onze futebolistas escolhidos pelo "dono dos cromos" para
representarem o "Glorioso" na temporada de 1966/67 que significou a
conquista do título de campeão nacional (mais três pontos que o 2.º
classificado, a equipa de estudantes da Associação Académica de Coimbra), da
Taça de Honra de Lisboa (V 2-0 com o Sporting CP na final), a presença nos
quartos-de-final da Taça de Portugal, nos oitavos-de-final da Taça das Cidades
cm Feiras, e dois terceiros lugares nos Torneios da Costa do Sol (Málaga) e Nova
Iorque.
Onze cromos em 34 futebolistas
Apesar de serem onze
cromos, o treinador Fernando Riera utilizou para disputarem os 55 jogos da
temporada 34 futebolistas incluindo cinco guarda-redes (Nascimento, Costa
Pereira, José Henrique, Abrantes e Melo). Nos 55 jogos o "Glorioso"
obteve 37 vitórias, nove empates, nove derrotas, 127 golos marcados - por 16
futebolistas - e 53 golos sofridos. Só Eusébio marcou... 56 golos! Mais três
tentos que o total de golos sofridos pelo Clube.
Os
"onze cromos" apenas jogaram juntos em... dois jogos
Em 1966/67 para
disputar os 55 jogos o treinador Riera escolheu 40 "onzes" diferentes.
Coube ao "onze da caderneta de cromos" realizar dois jogos, e
consecutivos, ambos para o campeonato nacional, correspondendo ao 35.º e 36.ºs
jogos da temporada, por ordem cronológica. Além deste "onze" com dois
jogos, houve mais oito "onzes" que também fizeram dois jogos e dois
que fizeram quatro jogos. No total 26 jogos (18 jogos com nove
"onzes" e oito jogos feitos por dois "onzes"). Restam 29
"onzes" diferentes para os restantes 29 jogos! Complicado!
OS JOGOS DO
ONZE DA CADERNETA
Data
|
C./j.
|
Res
|
Adversário
|
Estádio
|
int.
|
Golos
|
05.Fev
|
CN/14
|
V
7-0
|
Vitória SC (G.)
|
SLB
|
3-0
|
Torres (3)
J. Augusto (3)
Jaime Graça
|
12.Fev
|
CN/15
|
V
2-1
|
Leixões SC
|
Mar
|
1-0
|
José Torres (2)
|
O "dono
dos cromos" soube escolher
Os onze eleitos para
cromos apenas fizeram dois jogos juntos a titular, em 55 encontros, mas foram os
onze futebolistas com mais jogos, dos 34 jogadores utilizados durante a temporada pelo
treinador Fernando Riera. No alvo, esta escolha!
O ONZE DA CADERNETA
Nome
|
Posição
(jogos)
|
Minutos
|
Jogos
Totais
|
GM
|
GS
|
|
Cavém
|
DD
|
52
|
4 626
|
52
|
1
|
-
|
Eusébio
|
MC/Av.
|
40
|
4 408
|
49
|
56
|
-
|
Raul
|
DCD
|
43
|
4 158
|
47
|
2
|
-
|
José Augusto
|
ED
|
37
|
4 039
|
48
|
19
|
-
|
Cruz
|
DE
|
44
|
4 005
|
45
|
-
|
-
|
Jacinto
|
DCE
|
44
|
3 988
|
45
|
-
|
-
|
Jaime Graça
|
ME
|
40
|
3 795
|
44
|
2
|
-
|
Simões
|
EE
|
40
|
3 656
|
41
|
5
|
-
|
Coluna
|
MD
|
32
|
2 878
|
32
|
2
|
-
|
Nascimento
|
GR
|
30
|
2 685
|
31
|
-
|
30
|
José Torres
|
AC
|
23
|
2 484
|
30
|
16
|
-
|
OS FORA-DO-ONZE
DA CADERNETA
(os futebolistas que mais contribuíram
para que os "Onze da Caderneta" não jogassem juntos a titulares em
mais jogos)
Nome
|
Substituíram
os "cromos"
|
Minutos
|
Jogos
Totais
|
GM
|
GS
|
Nélson
|
José
Torres
|
2 219
|
28
|
9
|
-
|
Iaúca
|
José
Augusto
|
1 827
|
25
|
4
|
-
|
Costa Pereira
|
Nascimento
|
1 798
|
21
|
-
|
20
|
Jorge Calado
|
Coluna
|
1 627
|
19
|
3
|
-
|
Santana
|
Jaime
Graça
|
994
|
13
|
1
|
-
|
Augusto Silva
|
Cruz
|
677
|
9
|
1
|
-
|
Humberto F.
|
Raul/
Jacinto
|
495
|
6
|
-
|
-
|
Diamantino C.
|
Simões
|
480
|
5
|
3
|
-
|
Até há fotografia da equipa do "onze dos cromos 1966/67, apesar de terem alinhado juntos em apenas dois jogos
E quanto
aos dois "onzes" que fizeram quatro jogos cada um
Da esquerda para a direita. De cima para baixo. Jaime Graça, Raul, Jacinto, Cruz, Cavém e Nascimento; José Augusto, José Torres, Eusébio, Coluna (capitão) e Simões |
Resta dizer que se os
"onze futebolistas da caderneta de 1966/67" foram os mais utilizados
nos tais dois onzes que fizeram, cada um deles, quatro jogos. Um desses "onzes" teve em comum
com o "onze da caderneta" nove futebolistas: saíram Coluna e Torres,
para entrarem Jorge Calado e Nélson. No outro "onze utilizado também em
quatro jogos" a semelhança com o "onze dos cromos" ainda é maior,
pois dez futebolistas são comuns, com apenas Iaúca no lugar de Simões.
Mas esta
temporada de 1966/67 foi muito ingrata para dois futebolistas
Para um - Luciano -
foi fatal. Para outro - Augusto Silva - foi a sua actividade de futebolista que
ficou irremediavelmente perdida! Falando de cromos há que recordá-los
eternamente quando se escreve sobre esta temporada que acabou feliz (título de
campeão nacional) mas viveu duas tragédias, uma delas fatal.
Os últimos são os primeiros
Um agradecimento
muito especial, por ser entre Benfiquistas, a quem teve a brilhante ideia de
colocar na internet digitalizações com qualidade dos "cromos do
Benfica"! (quem quiser aceder é só clicar)
Espero, em
breve, "fazer mais uma caderneta"!
Alberto Miguéns
NOTA: Note-se que
apesar de ver o Benfica a preto-e-branco na TV, foi através do ciclismo que
descobri, às cavalitas do meu pai, na baixa da Figueira da Foz, em Setembro de
1965 (a mês e meio de fazer cinco anos) que o Benfica era vermelho. Porque os
ciclistas que comandavam o pelotão na rua Manuel Fernandes Tomaz em direcção da
Estação dos comboios, eram do Benfica, segundo as palavras do meu pai. Disse-me
ele, então com 27 anos: "Tens sorte! O Benfica vem à frente!" Olhei e
disse-lhe: "O Benfica são os de vermelho?" O meu pai olhou para cima
dos seus ombros e disse: "Então não sabes que o Benfica é vermelho? Toda a gente sabe!"
Eu não sabia. Na televisão era a preto-e-branco!
Excelente história de Benfiquismo.
ResponderEliminarEu também me tornei do Benfica... Cinzento. O meu pai é que, sempre que lhe era possível, comprava umas revistas a cores que festejavam conquistas, neste caso as europeias.
http://aminhachama.blogspot.pt/2013/07/jogos-imortais-sport-lisboa-e-benfica-5.html
Tenho algumas cadernetas do início dos anos 80... Um must!
Saudações Gloriosas.
Gostei muito deste post, sobretudo da NOTA final. Acho que deveria contar mais histórias deste género, pois dão um ar mais garrido ao blog. Cumprimentos... de um não benfiquista
ResponderEliminarEra uma satisfação danada quando me saia um cromo do Benfica. Bons tempos.
ResponderEliminarExcelente artigo.
Essa montagem dos cromos do Eusébio é do meu blogue www.cromodoscromos.com feita por mim, aquando o seu falecimento e quando demos também uma entrevista para a revista "Visão".
ResponderEliminarCaro João Brites
EliminarParabéns pelo trabalho. Infelizmente na internet não identificam quem faz as composições. Copiam e repetem. Eu até pensei que foi outro coleccionador Joaquim Lima. Contactei-o mas ele foi evasivo. Ficou de responder mas não cheguei a receber retorno dele acerca dos cromos.
Renovo os meus parabéns pelo magnífico trabalho que fez.
Alberto Miguéns
Bom dia amigo:
ResponderEliminarDesculpe esta simples homenagem de um coleccionador que anda nisto há mais de 40 anos.
PARABÉNS.
Isto é que é reviver a nossa infância e não escrever baboseira sem nexo nenhum pois parece que foram eles que descobriram o bacalhau demolhado, como se diz aqui no Porto.
MUITO BOM,opinião de um grande coleccionador.
Obrigado
Nascu60
Boa tarde
ResponderEliminarTambém tenho um blog com as cadernetas que tenho mais as carteirinhas.
Uma excelente descrição do que eram os anos 60 e as coleções,deixe-me dizer-lhe caro amigo que ainda hoje coleciono e fico sempre contente quando sai um cromo do Benfica,junto também as saquetas e quando compro alguma dos anos 60 é um prazer tão grande como era na época.
Parabéns pelo blog.