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01 julho 2017

Romance é Romance. História é História

01 julho 2017 0 Comentários
ROMANCE HISTÓRICO É ROMANCE. HÁ ALGUNS ANOS DISSERAM-ME QUE O ESCRITOR JOSÉ RODRIGUES DOS SANTOS TINHA UTILIZADO O BENFICA PARA DESENVOLVER UM ENREDO DE UM DOS SEUS LIVROS.


À época confesso que não liguei. Um escritor pode utilizar a realidade como quiser porque nunca deixará de ser ficção por muito que tenha por base experiências vividas ou leituras de factos históricos. O que ele escrevesse nada acrescentaria À Gloriosa História. Seria sempre copiar o que alguém já tinha investigado e escrito. Nada de novo.

Depois o romance produto do romancista
Qualquer temática acerca do Benfica num romance nunca valerá pela História mas pelo lado da estória. E aqui relaciona-se com a capacidade e criatividade do autor. Confesso que o pouco que li daquilo que o autor já escreveu não me fascina. Escreve bem numa linguagem cinematográfica - se fosse noutro país os seus livros deviam dar bons argumentos para filmes (embora pelo pouco que conheça deles...é sempre arriscado dizer isto) - mas é uma literatura pouco densa e do tipo para passar o tempo. Acrescenta muito pouco ao parco e lento desenvolvimento da Humanidade. Embora esteja longe de serem "romances de cordel". A história da Literatura Mundial está repleta deste tipo de escritores e escrita. Até devem ser a maioria. Em Portugal há desde Pinheiro Chagas e Júlio Dinis a Fernando Namora, para não citar mais do que três nomes. Literatura de cordel é o que domina, principalmente de "vedetas" das televisões. Esses sim livros execráveis para gastar tempo. José Rodrigues dos Santos é interessante para ocupar o tempo. Depois de lido pouco sobra. E isto pelo pouco que li. Tudo isto para justificar que nada me opõe à produção literária que tem qualidade e merece ter leitores, mas onde eu não estou incluído.

O que me afectou durante esta semana
Foi alguém que é conhecedor do obra de José Rodrigues dos Santos vir falar da fundação do Benfica e dos seus primeiros anos pela versão José Rodrigues dos Santos em que a "bota não batia com a perdigota". E isso transtornou-me porque esse leitor acreditava piamente que a fundação e os primeiros anos (rivalidade com o Sporting CP) era como o consagrado escritor afirmava. E não era. Ou o leitor estava equivocado (já tinha lido o livro há muito tempo e nem sabia o nome) ou José Rodrigues dos Santos (JRS) aproveitou, por negligência mas acredito mais por conveniência do enredo para romancear algumas situações sem que haja documentos históricos que o suportem. Tive que descobrir o nome do livro. "A Filha do Capitão" cuja edição actual é a 30.ª (Junho de 2014) e a primeira foi em Novembro de 2004.

Estava à espera do "pior"
Temia que houvesse mais romance envolvendo a história do Clube nos seus primórdios. Há muitas incorrecções históricas (ainda que resultem melhor no enredo alterá-las) mas isso é próprio de quem escreve um romance, mesmo histórico. Dar um cunho mais dramático ou trágico a situações reais (por vezes banais) é próprio da escrita criativa. Ricardo Serrado (e os quistos que deixou no Benfica) bem como os responsáveis pelo património, cometem muito mais «atentados à Gloriosa História» e passam por fazer história e não romancear a história.

Ao ler a "Filha do Capitão" percebe-se que JRS
Leu a História do Sport Lisboa e Benfica 1904/1954, publicada em fascículos a partir de Janeiro de 1954, cujos 24 fascículos foram reunidos em dois volumes encadernados. Ele leu as primeiras 100/150 páginas e é a partir destas que tira a informação para dar consistência, principalmente, a dois personagens do romance arranjando-lhes ocupação e passatempo com o futebol e os "matches" para caracterizá-los e entreter os leitores.

Só vou escolher um "erro" (que nem o é)!
Não o é do ponto de vista do romance. Claro que é do ponto de vista histórico. Entre uma dúzia deste tipo de erros escolho o da página 147. Porque não vou só dizer que é erro histórico. Vou prová-lo. Repito que o autor não estando a fazer um livro de história acerca do Benfica tem toda a legitimidade em inventar factos que dêem mais força ao que pretende. É assim a literatura. Compete aos leitores distinguirem uma situação da outra.

A história é acerca do jogo entre o SLB e o SCP
Em 25 de Outubro de 1908. Eis parte (as que interessam) das páginas 146 e 147. Peço desde já ao editor da Gradiva que não me processe pois penso ser ilegal reproduzir parcialmente páginas sem autorização!


Há aqui quatro ligeiras interpretações que podem criar confusão e uma quinta que não corresponde, nem mínima, nem maximamente, à verdade do que se passou:
1. «Fundira-se» Não houve fusão. Os considerados pelo autor, "fusionistas" à época (13 de Setembro de 1908) sempre disseram e escreveram que a junção era o conceito que melhor se ajustava à união dos dois clubes. Daí que até dois dos três principais símbolos são mesmo uma junção: emblema do SL sobreposto sobre o do SCB; nome adicionado: SL + SCB = SL e B; O outro símbolo - cores do equipamento - até foi integralmente o do SL. Em contrapartida os associados do GSB (mais organizados administrativamente) ficaram com os seus números de associados e a partir do 223 passaram a incluir os do SL. Além de que os dirigentes eram os do SCB entrando depois Cosme Damião para vogal - mais tarde capitão-geral e vice-presidente da Direcção - para ter sob sua responsabilidade a organização e desenvolvimento de todo o Futebol do SLB, pois os elementos do SCB ficaram afastados de se meterem em assunto tão importante - manter o SL (agora conhecido como SLB) - ganhador;
2. O GSB (que depois do Regicídio de 1 de Fevereiro de 1908) passou a SCB «não passava na verdade de um club de ciclismo». Até era mais um clube de atletismo. Muito mais que de ciclismo embora também o praticasse mas de forma mais lúdica. Em poucas provas participaram (talvez duas) organizadas pela União Velocipédida Portuguesa com resultados pouco significativos. Já em atletismo era "a sério", tanto que venceram a I Maratona Portuguesa (em 20 de Outubro de 1907) efeméride que este blogue assinalará ao completarem-se os seus 110 anos;
3. «o novo club iria defrontar o Sporting». Não havia novo clube, apenas uma alteração de designações e procedimentos;
4. Os «jogadores da equipa (do SLB) eram quase todos os mesmos do Sport Lisboa...». Não! Eram todos do Sport Lisboa. O único (por ser considerado o melhor do SCB) Germano Vasconcelos foi jogar em 1908/09 na 3.ª e depois na 2.ª categoria que Manuel Gourlade/Cosme Damião não gostavam de colocar futebolistas na primeira categoria sem perceberem muito bem a real valia deles em termos individuais, colectivos e no...Benfiquismo. O primeiro jogo entre o "Glorioso" e o Sporting CP ocorreu em 1 de Dezembro de 1907 (quase um ano antes) em Carcavelos, no campo dos ingleses do Carcavellos SC facto que este blogue assinalará, pois completam-se em 2017, os 110 anos desse jogo de estreia entre dois clubes que ainda existem.

É falso na Gloriosa História (mas real como ficção criada pois está escrita!)
«E a terceira surpresa foi a inesperada vitória do Benfica sobre o Sporting, que contava com os oito artistas roubados no ano anterior ao Sport Lisboa». Como eu já escrevi até esta página 147 (e mais algumas depois) há vários erros históricos, mas por piedade para com os leitores deste blogue fico-me pela demonstração apenas deste erro.

1. Em 25 de Outubro de 1908 (a data citada pelo autor) "os oito artistas roubados" (o sublinhado a vermelho no texto anterior é da minha responsabilidade) estavam reduzidos a...três. Três! Ou seja, 8-3 = 5! Cinco não jogaram. Aliás um desses oito "artistas roubados" no Verão de 1907 - Henrique Costa - até jogou pelo SLB em 25 de Outubro de 1908. Tornaram-se muito famosos esses oito - por serem da primeira categoria - mas foram cerca de uma vintena deles;
2. As equipas alinharam com (notícia retirada do História do SLB, escrita por Mário Oliveira e Rebelo da Silva) mas que podem ser encontradas em inúmeros publicações publicadas:

História do SL Benfica 1904/1954; I volume; página 96; Mário de Oliveira e Rebelo da Silva; 1954;Lisboa; Edição dos autores
3. A fotografia de um onze do SCP mais próximo do que jogou em 25 de Outubro de 1908 (D 0-2) é este:


Um equipa de 1908/09. De cima para baixo. Da esquerda para a direita: (avançados) António Stromp, António Rosa Rodrigues (Neco), Shirley, Nóbrega de Lima e João Bentes;  (meia-defesa) Francisco Viegas, Francisco Stromp e António Vital; (defesas) Amadeu Cruz, Morice (guarda-redes argentino) e Jaime Cadete. Destes onze futebolistas, seis jogaram em 25 de Outubro de 1908, incluindo dois (a vermelho) dos três que restavam dos oito. Cinco (a preto) não disputaram esse jogo

4. Além de muitos jornais terem publicado crónicas e a constituição das equipas também há várias fotografias que deixaram para a posteridade imagens do jogo. Eis duas que o Master Groove já está possesso com tanta digitalização:


Dois oito futebolistas da primeira categoria que saíram do "Glorioso" para o Sporting CP os dois irmãos Rosa Rodrigues (Candinho e Neco) foram os únicos que são Gloriosos Fundadores. Os outros seis: Henrique Costa, Emílio de Carvalho, António Couto, José Cruz Viegas (até já estava retirado fazendo jogos esporádicos na segunda categoria do "Glorioso"), Albano dos Santos e Daniel Queirós Santos foram pioneiros mas não pertencem aos 24 fundadores. Repito: Henrique Costa regressou antes deste jogo e eis dois dos nossos fundadores, equipados à SCP, no jogo de estreia num Dérbi de Lisboa desse equipamento bipartido a branco-e-verde num campo (Feiteira) onde nunca jogaram. Uma bela fotografia para assinalar a estreia no primeiro campo do Clube que haviam fundado e de que foram figuras importantes no início dos "flanelas vermelhas". Até mais, muito mais, que Cosme Damião. Quando eles saíram, no Verão de 1907, o "Glorioso" treinava e jogava em terrenos públicos, nas Terras do Desembargador, às Salésias. Neste jogo dos oito jogaram três: Cândido Rosa Rodrigues, António Rosa Rodrigues e Albano Santos. Os outros cinco já eram...

5. Para terminar em Glória. O onze do Benfica. Estes foram mesmo os futebolistas que derrotaram, por 2-0, o Sporting CP em 25 de Outubro de 1908. NOTA para os equipamentos. As flanelas vermelhas do SLB, em 1908, exactamente as mesmas do Grupo Sport Lisboa de 1905:


Da esquerda para a direita. De cima para baixo: (meia-defesa e defesas) Henrique Costa, Luís Vieira, João Persónio (GR), Cosme Damião, Leopoldo Mocho e Artur José Pereira; Ao lado, Gastão Pinto Basto (árbitro); António Costa, Eduardo Corga, David da Fonseca, António Meireles e Carlos França. Neste caso nunca é demais repetir. Henrique Costa jogou no "Glorioso" até 1906/07, em 1907/08 (foi um dos oito que saiu para o SCP) e em 1908/09 regressou ao Benfica. O que faz daquilo que foi escrito por José Rodrigues dos Santos apenas ficção

Pior é ser o Clube a adulterar a História. O romancista fez o trabalho dele. O Benfica não faz!

Alberto Miguéns

NOTA: Leiam livros. Mesmo romances históricos. Mesmo romances (ficção) onde se escreva acerca do Benfica. Não pensem é que o que estão a ler seja a História do Clube

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